A troca de recém-nascidos na maternidade sob a perspectiva da multiparentalidade:
- Clarice Quaresma
- 24 de fev. de 2023
- 3 min de leitura
“Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito.” Georges Ripert
Do conceito e das formas de multiparentalidade:
Foi-se o tempo no qual o aspecto genético era o único apto a estabelecer laços familiares. O critério biológico vem cedendo espaço, cada vez mais, à afetividade e à realidade social. Desta forma, faz-se plenamente possível, no cenário jurídico atual, o reconhecimento da parentalidade fundada em fatores não-biológicos.
A coexistência da filiação biológica e não-biológica em um mesmo contexto familiar gera o fenômeno da multiparentalidade.
A filiação socioafetiva (não-biológica) pode ocorrer de três formas: adoção, reprodução assistida heteróloga e posse de estado de filho.[1]
Nas hipóteses de troca de recém-nascidos na maternidade, ocorrendo a convivência prolongada da criança no grupo familiar, estaremos diante da filiação socioafetiva pela posse de estado de filho.
A coexistência de diferentes tipos filiatórios pode acarretar diversos questionamentos e inseguranças. Ora, se na filiação fundada no conceito tradicional de família, com um único pai e uma única mãe, há uma extensa gama de conflitos relacionados à situação da criança, o que esperar de um núcleo familiar com ainda mais integrantes?
Nas circunstâncias em que exista dissenso entre os pais biológicos e socioafetivos, qual vínculo deve prevalecer?
Da igualdade entre as formas de filiação:
A fim de aclarar a dinâmica jurídica das famílias multiparentais, imperioso ressaltarmos que o Poder Judiciário já se posicionou pela igualdade entre as formas de filiação. O Supremo Tribunal Federal, no belíssimo julgamento do Recurso Extraordinário 898060/SC, de relatoria do Ministro Luiz Fux, determinou que não há hierarquia entre os vínculos filiais.
“A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.”[2]
Na prática, a igualdade entre as formas de filiação se traduz na impossibilidade de que um filho seja preterido em relação a outro em virtude da origem do vínculo filial.
Os efeitos da parentalidade nas mais diversas esferas (previdenciária, patrimonial, sucessória) são os mesmos para todos os filhos – sejam eles biológicos ou afetivos.
Da necessidade de aplicação do melhor interesse da criança em cada caso concreto:
Diante da imensidão de casos de famílias multiparentais no mundo fenomênico, cada uma com as suas particularidades, torna-se inviável a elaboração de uma única solução generalizada.
Questões relacionadas à guarda (física e jurídica), convivência e alimentos, devem ser decididas de maneira individual. Conflitos de maior complexidade carecem, ainda, da realização de estudo psicossocial, com a escuta das partes envolvidas por uma equipe multidisciplinar, formada por psicólogos e assistentes sociais.
O Judiciário, cada vez mais sensível à mudança de perspectiva do direito das famílias, precisa se atentar para as especificidades da vida de cada menor que busca a tutela de seus direitos.
Deste modo, forçosa a análise de cada situação, em sua concretude, para a verificação da melhor resolução, em atenção ao melhor interesse da criança e do adolescente.
[1] COUTO, Cleber. Colidência e coexistência da filiação biológica e socioafetiva, in REVISTA IBDFAM: FAMÍLIA E SUCESSÕES. v. 44 (mar./abr.) – Belo Horizonte: IBDFAM, 2021. [2] STF. RE 898060, Relator(a): Min LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21.09.2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO Dje – 187 DIVULG 23.08.2017 PUBLIC 24.08.2017.
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